Oies Bookaholics!
Vamos falar de um livro de ficção que sai da hegemonia norte-americana da literatura mundial? Hibisco roxo é o primeiro livro de ficção publicado pela autora nigeriana, e um dos grandes nomes do movimento feminista contemporâneo, Chimamanda Ngozi Adichie, que ganhou sua edição brasileira ao ser publicado pelo grupo Companhia das Letras.
Purple Hibiscus – Literatura Africana – Tradução: Julia Romeu – Companhia das Letras – 2011 – 328 Páginas – 5/5
Sinopse: Protagonista e narradora de Hibisco roxo, a adolescente Kambili mostra como a religiosidade extremamente “branca” e católica de seu pai, Eugene, famoso industrial nigeriano, inferniza e destrói lentamente a vida de toda a família. O pavor de Eugene às tradições primitivas do povo nigeriano é tamanho que ele chega a rejeitar o pai, contador de histórias encantador, e a irmã, professora universitária esclarecida, temendo o inferno. Mas, apesar de sua clara violência e opressão, Eugene é benfeitor dos pobres e, estranhamente, apoia o jornal mais progressista do país. Durante uma temporada na casa de sua tia, Kambili acaba se apaixonando por um padre que é obrigado a deixar a Nigéria, por falta de segurança e de perspectiva de futuro. Enquanto narra as aventuras e desventuras de Kambili e de sua família, o romance que mistura autobiografia e ficção, também apresenta um retrato contundente e original da Nigéria atual, traçando de forma sensível e surpreendente, um panorama social, político e religioso, mostrando os remanescentes invasivos da colonização tanto no próprio país, como, certamente, também no resto do continente.
Eu ganhei esse livro de presente de aniversário no ano passado da (mana) Amanda e demorei para ler porque depois de ler alguns dos textos da autora Chimamanda, eu sabia que essa leitura seria mais densa, me levando a refletir, e foi exatamente o que aconteceu. Eu demorei cerca de duas semanas e meia, levando em conta que o livro é composto por um pouco mais de 300 páginas, para finalizar a leitura porque por mais que a escrita da autora fosse fluída, as temáticas exigiam um pouco de afastamento da obra para eu poder respirar e tentar digerir os acontecimentos.
A narrativa em primeira pessoa, sob a perspectiva de Kambili, uma jovem de 17 anos que sofre com o poder autoritário e religioso do seu pai, desde a rigidez na educação, exigindo que a moça e seu irmão mais velho Jaja, ocupassem sempre os primeiros lugares nas suas respectivas turmas, bem como os princípios bíblicos e todos os costumes da família. Kambili está tão enclausurada nessa atmosfera que a jovem não consegue e não pode se expressar, ela está sob um regime (e não levem esse termo como exagero), sem ter muita noção disso, já que o pai estabeleceu os princípios a serem seguidos desde sempre. A sensação que eu tive na leitura é que nós, como leitores, acabamos enclausurados como a protagonista pela impotência e pelo distanciamento por vivermos uma realidade tão diferente… em partes!
Mas antes de falar um pouco mais sobre o mundo particular de Kambili e sua família, cabe destacar outros aspectos da obra de Chimamanda, como a colonização, me chamando a atenção para um texto que precisei ler para a faculdade nesse semestre. O texto “Diferença” versus “alteridade”: a invenção do teatro jesuítico da missão (Brasil, séc. XVI, de Magda M. Jaolino Torres, retrata a questão do assujeitamento do sujeito com a prática do teatro jesuítico no Brasil, a partir do discurso religioso numa língua que não era falada pelos índios, não havendo uma interação entre dois povos (padres e índios) e sim uma imposição do homem branco a partir da doutrina religiosa católica. O mesmo ocorre com o povo nigeriano descrito por Chimamanda, já que por muitas vezes os padres que vinham da Europa minavam a cultura local, principalmente no quesito língua:
O padre Benedict mudara as coisas na paróquia, insistindo, por exemplo, que o credo e o kyrie fossem recitados apenas em latim; igbo não era aceitável. Além disso, devia-se bater palmas o mínimo possível, para que a solenidade da missa não ficasse comprometida. Mas ele permitia que cantássemos músicas de ofertório em igbo; chamava-as de músicas nativas, e quando dizia “nativas” a linha reta de seus lábios pendia nos cantos e formava um U invertido. (p. 10)
Pode parecer um fato sem muita importância, mas vale a pena ressaltar que a língua é um dos marcos de identidade de um povo, e quando esse aspecto é ignorado, perde-se um dos traços mais intrínsecos de uma nação, desvalorizando-a, diminuindo os valores na medida que o poder dos colonizadores. E vale lembrar que esta não é uma prática exclusiva dos países africanos, no Brasil aconteceu a mesma coisa, o tupi a várias línguas indígenas foram silenciados ao longo da história por conta da colonização, já que a prática dos colonizadores, entre outras coisas, é justamente a de impor a sua própria linguagem. E a questão da língua também é um fator essencial para o pai de Kambili:
Papa quase nunca falava em igbo e, embora Jaja e eu usássemos a língua com Mama quando estávamos em casa, ele não gostava que o fizéssemos em público. Precisávamos ser civilizados em público, ele nos dizia; precisávamos falar inglês. A irmã de Papa, tia Ifeoma, disse um dia que Papa era muito colonizado. (p. 20)
E ainda esse ponto é novamente levantado quando os jovens precisam escolher um nome inglês para quando fazerem a crisma, uma das práticas do catolicismo, e isso é fortemente criticado por Amaka, prima de Kambili:
Quando os missionários chegaram aqui, eles achavam que os nomes do povo igbo não eram bons o suficiente. Insistiam para que as pessoas escolhessem um nome inglês antes de serem batizadas. Nós não devíamos ter progredido? (…) Mas então qual é o objetivo? – perguntou Amaka a padre Amadi, como se não houvesse escutado o que sua mãe dissera. – O que a Igreja está dizendo é que só um nome inglês torna válida a nossa crisma. O nome “Chiamaka” diz que Deus é belo. “Chima” diz que Deus sabe mais, “Chiebuka” diz que Deus é o melhor. Por acaso eles não glorificam Deus da mesma forma que “Paul”, “Peter” e “Simon”? (p. 286)
A obra se desenvolve muito mostrando os costumes da Nigéria, desde a comida, representada diversas vezes ao longo de todo o livro, os termos específicos (que não tiveram tradução e empacaram um pouco o ritmo de leitura) as músicas, os jogos, roupas, e os cuidados adotados para os cabelos crespos. Esses detalhes conseguem transportar o leitor para uma realidade diferente do que está acostumado a ler em livros com personagens mais jovens, porque sai dos padrões já tão disseminados da cultura norte-americana. Ainda mais quando o livro coloca em oposição o ambiente de Kambili e Jaja, numa criação totalmente autoritária com a dos primos Amaka e Obiora, as diferenças financeiras de riqueza e pobreza por um lado e a liberdade de expressão, de compartilhamento de ideias, por outro lado. Os pensamentos são tão divergentes que Kambili, e Jaja principalmente passam a enxergar possibilidades que jamais tinham enxergado pela “educação” tão limitada do pai.
É a partir da personagem da tia Ifeoma que a autora usa para abordar as importância da igualdade de gêneros, ao colocar os filhos para cumprir as tarefas domésticas, independente do sexo, a prática de esportes e o empoderamento feminino, incentivando as jovens a estudar na faculdade em vez de acreditar que elas só servem para casar, cuidar da casa e procriar. Como professora universitária acredita na educação como um fator essencial para a formação não só profissional, mas de valores e do cuidado com outros seres humanos. E por isso me recordei de vários pontos do livro de não-ficção de Chimamanda, o Para educar crianças feministas 🙂
Nesse sentido, meu sentimento durante a leitura foi cambiante, ora era de empatia pelos jovens, ao mesmo tempo eu ficava indignada por Kambili e sua mãe (até certo ponto) serem tão submissas e aceitar tudo de forma tão passível e resignada, mas é aquela coisa: para quem está vendo a situação de fora é fácil encontrar soluções, mas a verdade é que muitas vezes a imposição nos é imposta e não nos resta outra alternativa a não ser aceitá-la. O que me deixou de certo modo decepcionada foi que tanto Jaja e a mãe conseguiram mudar sua relação a Eugene, e Kambili não, me dando a impressão ela continuou guardando afeição por um pai tão cruel mesmo depois de tudo que passaram ao longo dos anos.
A crueldade desse pai é algo que nos enfurece ao longo da leitura, desde a rigidez exacerbada com os filhos, obrigando-os a seguir horários implacáveis de estudos, sem direito ao lazer como todo jovem “normal” que ouve músicas, assiste televisão e sai com os amigos, porque na verdade nem amigos eles podem ter, além dos castigos cruéis e traumáticos. Ao mesmo tempo que esse marido diz ser a noiva de Cristo (porque a Igreja e consequentemente cada membro é a noiva que espera pelo noivo Jesus) e por isso deve estar cuidada e santa, ele trata sua esposa das piores maneiras possíveis e sem justificativas para tanto. Confesso que esses eram os momentos mais difíceis para mim devido a hipocrisia tão bem retratada, hipocrisia também que se manifesta por tantos trabalhos sociais que este homem faz, ajudando diversas pessoas, mas não ajudando os próprios familiares que vivem em situação de miséria, só porque eles eram considerados “pagãos”, por não seguirem a mesma doutrina religiosa que ele.
Aliás, volto-me agora para falar sobre a diferença entre religião e religiosidade. Digamos que a religião é a crença que podemos ter em certas doutrinas, já a religiosidade nos faz acreditar que somente a nossa religião é a correta, desmerecendo todas as demais, e julgando os que não acreditem na mesma crença e princípios que nós temos. A religiosidade não tem empatia, bom senso ou qualquer tipo de equilíbrio, não por acaso é por conta da religiosidade que há tantas “guerras santas”, principalmente no Oriente Médio. Em Hibisco roxo, podemos considerar o pai de Kambili como a religiosidade, já que seus discursos sempre se valiam na Bíblia e no cristianismo, mesmo para justificar seus atos (covardes) contra os filhos, esposa e demais familiares.
Mas a realidade descrita por Chimamanda não é muito diferente da realidade que vivemos aqui no Brasil, desde as desigualdades sociais, com muitas cidades ainda sem saneamento básico, por exemplo, problemas na educação, economia, política e corrupção. Um dos pontos que merece destaque (grifado e marcado com caneta marca-texto amarelo fluorescente) é sobre intervenção militar:
Um golpe sempre iniciava um ciclo vicioso. Militares sempre derrubariam uns aos outros simplesmente porque tinham como fazer isso e porque todos ficavam embriagados pelo poder. É claro, disse Papa, que os políticos eram mesmo corruptos, e o Standard já publicara muitas matérias sobre os ministros do gabinete que escondiam em contas no exterior o dinheiro que deveria ser usado para pagar os salários dos professores e construir estradas. Mas o que nós, nigerianos, precisávamos não era de soldados para nos comandar; precisávamos de uma democracia renovada. Democracia renovada. (…) Estão todos com medo. Escrevendo sobre como o governo civil era corrupto, como se achassem que o militar não vá ser. Esse país está entrando pelo buraco. (pp. 31-32)
O problemático é que esse discurso é de Eugene, o pai de Kambili, dono e apoiador do Standard, o jornal mais progressista do país, mas não só problemático como também sem sentido já que um homem tão voltado aos princípios conservadores de ética e moral se mostre a favor de ideias políticas revolucionárias. É muito semelhante a quem diz que é apoiador das causas lgbt+ e apoia a candidatura à presidência do ser que não vale a pena ser mencionado aqui, se é que vocês me entendem. Não tem sentido!
Eu poderia ficar aqui citando vários trechos ou temas retratados na obra, mas a minha intenção é de fazer um incentivo, não só para aqueles que procuram temáticas com uma crítica social, mas para mostrar um pouco da dimensão e o que se esperar do universo da autora. É a oportunidade de conhecer e valorizar autores, histórias e culturas que não são o padrão hegemônico que conhecemos e somos sobrecarregados desde sempre.
Chimamanda também tem mais dois romances: Meio sol amarelo e Americanah, além da coletânea de contos No seu pescoço, todos na minha lista (infinita) de livros desejados, afinal, são poucas mulheres negras que possuem espaço para escrever e publicar seus livros.
Até o próximo post!
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Republicou isso em Memórias ao Vento.
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❤
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Tenho ouvido muito falar dessa autora 🙂
E de outras fora do eixo EUA-Europa.
Está na minha lista de leituras futuras! 🙂
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Oies! Ela é fantástica! Depois que ler vou querer saber a sua opinião 😉
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Podexá! 😊
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Chimamanda é maravilhosa! Seus textos, sua fala, enfim… tudo que ela faz emana uma energia que sentimos em nossa alma. Utilizo muito o Sejamos Todos Feministas e Para educar crianças Feministas em minhas práticas enquanto professor (sou acadêmico de Pedagogia). Parabéns pela resenha, eu já havia ouvido sobre este livro, mas agora estou mega ansioso para ler esta obra de ficção da autora.
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Oies Rodrigo! Primeiramente seja muito bem vindo ao blog 🙂 Parabéns pela iniciativa de utilizar esses textos no seu trabalho como educador, creio que está fazendo a diferença! Fico muito feliz que você tenha gostado da minha resenha, esse tipo de feedback me inspira muito! Depois que ler, vou querer saber a sua opinião sobre, viu?! 😉 Cah
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Tenho uma resenha de “Sejamos todos Feministas” que fiz para a Faculdade, estava em um antigo blog mas como estou retornando ao meu ‘Mundinho engaiolado’ fiz um repos, caso tenha interesse em dar uma passadinha: https://mundinhoengaiolado.wordpress.com/2017/03/04/resenha-sejamos-todos-feministas/ ♥
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Sim, obrigada por deixar o link, vou fazer questão de conferir! 😉
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Excelente post! Também li Hibisco Roxo e gostei imensamente.
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Ah, obrigada! Fico contente por ter gostado da resenha 🙂 O livro traz vários questionamentos que precisam de situações que precisam ser expressas de alguma forma, não é? rs 😉
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[…] 1. Hibisco Roxo (Chimamanda Ngozi Adichie) 2. Heroínas (Laura Conrado, Pam Gonçalves e Ray Tavares) 3. Para todos os garotos que já amei […]
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[…] Eu fui mal numa prova que focava interpretação de texto e acabei fechando com a nota mínima para passar. Mas, como sou chata, aproveitei a oportunidade que o professor colocou para quem quisesse melhorar a nota ou quem tinha ficado de recuperação e fui fazer outra avaliação. Mudei totalmente minha estratégia de estudo, passei a resolver várias questões sobre interpretação de texto, em vez de ficar focada em termos específicos dos textos teóricos. Refiz os exercícios da sala de aula e foi sucesso, já que na prova de recuperação eu fechei com 9,5, (pena que o professor fez a média das duas notas hahaha). No final, realmente entendi que o objetivo da disciplina é apontar a opacidade que um texto tem, isso inclui imagens, músicas, etc, tanto que usei um outro conceito que estudamos sobre assujeitamento na minha resenha de Hibisco roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie. […]
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[…] para falar de dois outros livros que tratam dessa temática: Amor Amargo, de Jennifer Brown, Hibisco roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie e Dreamland, de Sarah Dessen, todos estes com resenhas disponíveis aqui no blog […]
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[…] uma das minhas escritoras contemporâneas favoritas, e depois te ter lido seus ensaios e o romance Hibisco roxo, pude conhecer sua outra faceta: a de […]
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