Oies Bookaholics!
A minha primeira leitura do mês de fevereiro foi também a minha primeira leitura favorita do ano: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, um dos livros autobiográficos de Maya Angelou: negra, escritora, cantora, atriz e nome de grande destaque não só dos Estados Unidos, mas mundial.
★★★★★ ❤
I know why the caged bird sings – Tradução: Regiane Winarski – Astral Cultural – 2018 – 336 páginas
RACISMO. ABUSO. LIBERTAÇÃO. A vida de Marguerite Ann Johnson foi marcada por essas três palavras. A garota negra, criada no sul por sua avó paterna, carregou consigo um enorme fardo que foi aliviado apenas pela literatura e por tudo aquilo que ela pôde lhe trazer: conforto através das palavras.
Dessa forma, Maya, como era carinhosamente chamada, escreve para exibir sua voz e libertar-se das grades que foram colocadas em sua vida. As lembranças dolorosas e as descobertas de Angelou estão contidas e eternizadas nas páginas desta obra densa e necessária, dando voz aos jovens que um dia foram, assim como ela, fadados a uma vida dura e cheia de preconceitos. Com uma escrita poética e poderosa, a obra toca, emociona e transforma profundamente o espírito e o pensamento de quem a lê.
Antes de realizar essa leitura eu tive dois contatos com Maya Angelou, primeiro pelo livro Fale!, de Laurie Halse Anderson e num segundo momento pelo documentário Maya Angelou: e ainda resisto (focado mais na carreira artística da autora), mas esses fatos não tornaram a leitura entediante, muito pelo contrário. Conhecer a história de uma pessoa pela sua própria voz é totalmente diferente, tornando a experiência mais densa, e no caso de Maya, angustiante.
Por ser um livro autobiográfico não acredito que alguns comentários que aparecerão nessa resenha não devem ser considerados como spoilers.
O primeiro sentimento que tive com essa leitura foi o tom poético da autora em alguns momentos, e a sensibilidade para tocar em assuntos tão densos e espinhosos. Eu sei por que o pássaro canta na gaiola relata a infância e adolescência de Maya, especificamente dos 7 aos 16 anos. Com isso temos uma perspectiva sobre a vida de uma menina negra entre as décadas de 1930 e 1940, que acaba se refletindo na situação de diversas outras crianças negras mesmo período. Por mais que a escravidão já tivesse acabado, o racismo assolava fortemente a população negra colocada à margem pelos brancos, principalmente por meio de leis específicas para as “pessoas de cor”.
Um dos pontos essenciais tratados na narrativa de Maya diz respeito à desestrutura familiar, era comum que os filhos pequenos fossem criados pelas avós e não pelos seus próprios pais. Maya e seu irmão Bailey são abandonados pelos pais e passam por anos sem ter nenhuma notícia deles, e nem sabem ao certo o motivo do abandono. Essas crianças são criadas pela avó paterna e pelo tio avó, mas são enviadas de trem sozinhas da Flórida para o Sul.
Momma, a vó paterna das crianças, é uma mulher de referência na comunidade por ter um mercado e ajudar sua comunidade, inclusive emprestando dinheiro aos poucos brancos que viviam naquela região. Entretanto ela é uma mulher extremamente rígida e religiosa, ela faz questão de criar os netos estritamente sob os princípios cristãos, e esse aspecto traz uma grande consequência para um acontecimento doloroso na vida da Maya. O tio avô Willie é um homem que sofre preconceito de duas formas: tanto por ser negro, tanto por ter uma deficiência física que o deixa manco. Ele não tem esposa, nem filhos, e também compartilha dos mesmos princípios que sua irmã viúva.
A narrativa descreve o cotidiano nessa comunidade: a escola, a igreja e o mercado da família. Maya não tem “preguiça” de contar os pormenores das tarefas que realizava na infância e das brincadeiras com seu irmão, a pessoa que ela mais tem convivência e apego, uma relação de muita cumplicidade e amor. Quando a gente pensa que a narrativa vai seguir contando sobre a rotina diária, muda completamente para acontecimentos que exigem pausas para que o leitor possa assimilar as experiências traumáticas de Maya.
Quando Maya tinha 8 anos e Bailey 9 eles vão passar um tempo com a mãe na Flórida. Eles estão receosos porque fazia muito tempo que não viam os pais, Maya retrata que nem mesmo lembrava de como eles eram. Levados pelos pais de carro seguem na jornada de volta para a casa da mãe, e Bailey se encanta por ela facilmente, enquanto Maya demonstra ainda suas fragilidades por não se sentir bonita, de não gostar de seus traços por ser negra e pelo seu cabelo crespo.
Porém a experiência é muito mais terrível, Maya começa a ser abusada pelo padrasto e acaba sendo estuprada por ele, com apenas 8 anos. A garota é ameaçada por ele e sua mãe descobre e o denuncia. Traumatiza com a experiência, Maya precisa depor num julgamento, é exposta e tem a sua palavra contrariada pelo tribunal. Como ela tinha muito medo do que tinha acontecido, ela mente no tribunal dizendo que tinha sido estuprada mais de uma vez. O padrasto não fica muito tempo na cadeia e depois é encontrado morto. Aquela criança se sente culpada, ainda mais por ter mentido, e segundo as crenças de que ela foi criada, ela tinha pecado e seus atos levaram a morte de um homem. Por isso, de volta à casa de Momma, Maya não é a mesma e não consegue lidar com uma experiência tão traumática, a garotinha que adorava ler, contar histórias e brincar, fica por mais de um ano sem falar com ninguém, e é a literatura que salva Maya dessa escuridão claustrofóbica. Acho que o título do livro, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, me parece vir justamente dessa sensação de estar preso e sua voz apenas para si.
Na maioria dos casos, as vítimas nos casos de abusos sexuais são julgadas e culpadas pelo o que aconteceu. Infelizmente até os hoje há inúmeras crianças que sofrem abuso de pessoas muito próximas a elas, não conseguem denunciar e vivem anos dessa maneira porque não encontram segurança ou confiança em alguém que acredite nelas. É terrível, é muito triste e desolador. Tudo é narrado de uma maneira tão crua que é impossível ficar alheio ao sentimento de culpa, desespero e dor que a autora relata. E sim, pode servir de gatilho para quem tem sensibilidade sobre o assunto.
Aos quinze anos Maya vai passar as férias de verão com o pai e sua madrasta, que mais parece uma irmã mais velha devido à pouca idade da garota. O pai de Maya costuma ir até o México para comprar condimentos culinários o que na verdade é uma desculpa para curtir a farra com as suas amantes. Numa dessas viagens ele resolve levar a filha e aqui vemos o quanto o pai é irresponsável e não dá nenhuma segurança à garota. Bêbado, ele abandona Maya sozinha, num país estrangeiro, a garota resolve dirigir sem mesmo saber e acaba batendo o carro, o que não traz nenhuma fatalidade. Entretanto, ao voltar para a casa do pai Maya acaba se envolvendo numa briga com a madrasta que na verdade não gostava nenhum pouco de dividir o marido. Durante a briga ela corta Maya que precisa fugir para que nada de mais grave ocorra, e mesmo com a ajuda do pai ela resolve ir embora, morando num ferro velho por um mês com outros jovens de rua.
É curioso notar que o movimento e a locomoção de um lugar para o outro é um ponto constante em toda a narrativa e significa não só a instabilidade física, mas também emocional e psicológica dessas crianças que não têm uma base familiar que condicione os princípios básicos de sobrevivência. E esse ciclo vicioso que persegue os negros desde à escravidão e se repete na vida de Maya quando ela engravida aos 16 anos e o pai da criança foge para não ter que lidar com as responsabilidades.
A maneira, e repito mais uma vez, crua que Maya descreve sua primeira relação sexual consensual e que resulta numa gravidez prematura e indesejada, e com seus princípios cristãos um aborto jamais poderia ser considerado uma opção , reflete muito nas suas experiências anteriores e também a descoberta da sua sexualidade. Até me arrisco a dizer que por ser um livro de memórias e reflexões, que essa frieza também é o reflexo dos abandonos que a autora sofreu ao longo da vida, principalmente nesse período crucial de formação de um indivíduo.
Eu sei por que o pássaro canta na gaiola me trouxe tantas reflexões e me fez aprofundar ainda mais nas questões raciais, assunto este que tem ganhado mais relevância para mim a cada dia.
Maya Angelou tem uma extensa obra, mas infelizmente poucos livros foram traduzidos, entretanto os demais títulos publicados no Brasil são:
Até o próximo post!
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[…] Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou ★★★★★ […]
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Amei a resenha, esse certamente foi um dos livros mais lindos que eu já li na minha vida. Chocante.
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Oies Monalise! Primeiramente seja muito bem vinda! A experiência dessa leitura é muito marcante, né? Impossível ficar alheio ao que Maya Angelou compartilha conosco de sua vida ❤
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