Resenha | Os despossuídos, de Ursula K. Le Guin

Oies Bookaholics!

Os despossuídos, da autora norte-americana Ursula K. Le Guin foi mais um das minhas leituras obrigatórias da faculdade nesse último semestre. Foi o meu primeiro contato com a obra dessa autora que escreve no gênero da ficção científica, mas que nesse livro trabalha um mundo distópico baseado na Guerra Fria. A edição brasileira foi publicada pela Editora Aleph.

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The Dispossessed – Tradução: Susana S. de Alexandria – 2017 – 384 Páginas – 4/5

Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin, é um romance de ficção científica ambientado no mesmo universo que A Mão Esquerda da Escuridão. Vencedora dos prêmios Nebula, em 1974, Hugo e Locus, em 1975, a obra lida com temas fundamentais a sua época, como o capitalismo, o comunismo russo e o anarquismo, além dos conceitos de individual e coletivo. A trama passa em dois planetas-gêmeos: Urras e Anarres. O primeiro é um mundo dividido em vários estados e dominado pelos dois maiores, que são rivais. Numa alusão clara aos Estados Unidos e à União Soviética, um dos Estados possui uma economia forte e uma sociedade patriarcal, enquanto o outro se posiciona como proletário e deseja imprimir seu modelo político em todo o planeta. Além disso, há um terceiro país, que, embora subdesenvolvido, é de extrema importância e se torna alvo de uma disputa política entre as duas nações soberanas, que iniciam uma guerra disfarçada entre si, em uma alusão à Guerra Fria. Já o planeta Anarres vive uma situação bem diferente: sua política anarquista, que representa uma terceira via à crise planetária de Urra, cria uma ilusão de sociedade perfeita. Tal ilusão só é quebrada quando um jovem e brilhante físico, Shevek, descobre a “Teoria da Simultaneidade”, que pode acabar com o isolamento do planeta, assim como favorecer as guerras de seu vizinho.

Se essas leitura não fosse obrigatória e com dois trabalhos para entregar sobre, acho que seria mais difícil concluir a leitura, já que demora a engrenar e foi difícil me envolver na narrativa. Mas assim que se vence essa barreira a história fica interessante e oferece diversos pontos para reflexão, já que estamos lidando com duas visões antagônicas: o socialismo de Anarres e o capitalismo de Urras, dois planetas que costumam não ter relações entre si.

Foi interessante perceber essas duas dinâmicas com a própria estrutura formal que a autora emprega em sua obra. Os capítulos são divididos pelos acontecimentos nos dois diferentes planetas, inciando no presente com a chegada do protagonista Shevek em Urras e o passado dele em Anarres. Essa dinâmica mostra as visões de estranhamento que um planeta tem do outro, e como suas formas políticas impactam as suas sociedades. Em Anarres, movido pelo socialismo, que prega a coletivização dos meios de produção e de distribuição, mediante a supressão da propriedade privada e das classes sociais, a ideia de coletivo chega a níveis extremos ao não adotar o modelo tradicional de família tal qual conhecemos. Não que o sexo seja algo proibido, muito pelo contrário, os relacionamentos seja eles quais forem são permitidos sem que as relações homo afetivas sejam consideradas algo anormal. Entretanto, os ambientes para as necessidades básicas como alimentação e descanso são realizadas em espaços coletivos, e no caso de casais, eles precisam solicitar quartos separados dos demais, e caso tenham filhos, estes devem ser deixados nas creches e até crescem sem a participação dos pais.

A associação amorosa era uma federação constituída voluntariamente, como outra qualquer. Enquanto funcionava, funcionava, e quando não funcionava mais, deixava de existir. Não era uma instituição mais sim uma função. Não havia sanções, exceto a da consciência de cada um. 

Por outro lado em Urras, a sociedade é movida pelo capitalismo, um sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e na irrestrita liberdade de comércio e indústria, com o principal objetivo de adquirir lucro, e que diferente do socialismo adota um sistema que cada indivíduo tem que gerir e arcar com as necessidades básicas, ou seja, todos precisam trabalhar e este trabalho deve resultar em resultados para a sociedade, seja para a própria sobrevivência quanto para gerir lucros. Não é muito difícil entender como este sistema funciona, já que é o sistema atual que domina quase todos os países, inclusive o Brasil, e por isso, percebe-se que há enormes diferenças sociais. Outro ponto muito marcado na obra que diferencia os dois lados é a a maneira como as mulheres são retratadas em Urras, lá elas não podem exercer as mesmas funções que os homens, isto porque eles não consideram que elas tenham condições para isso. Entre vários trechos, destaco esse a seguir:

Ele já tinha perguntado por que não havia mulheres a bordo da nave e Kimoe respondera-lhe que o bom funcionamento de um cargueiro espacial não era trabalho para mulheres (…)

Mas a perda de… de tudo o que é feminino, da delicadeza… e a perda da dignidade masculina… o senhor não pode pretender, com certeza, logo no seu trabalho, que as mulheres possam ser iguais ao senhor. São iguais em Física, em Matemática, em inteligência! O senhor não pode pretender ficar sempre se rebaixando ao nível delas.!

Mas sem defender um lado ou outro Os despossuídos mostra as rupturas nesses dois sistemas econômicos, não por acaso o subtítulo da obra faz menção a uma utopia ambígua, e tive duas interpretações disso após finalizar a leitura; a primeira é que os habitantes de cada lado defendem o seu lado como se fosse um lugar perfeito e utópico; uma segunda interpretação se vale mais do termo ambíguo, ou seja, revela que ambos os lados apresentam essas rupturas desses mundos utópicos. Acho interessante perceber isso em tempos em que há na política polarizações extremas de esquerda e direita, por exemplo, disputando espaços.

Como mencionei anteriormente, o contexto histórico-social da obra é a Guerra Fria, um período pós-Segunda Guerra Mundial marcado por disputas estratégias entre os Estados Unidos (Urras – capitalista) e a URSS (Anarres – socialista). A ciência é um dos principais temas  em Os despossuídos, e nesse sentido a figura do protagonista Shevek não se faz de forma aleatória, já que estavam em disputa em diferentes campos, principalmente tecnológico e militar, como a corrida espacial. Shevek é um físico cientista que não vê que a sua pesquisa e área de atuação é considerada em Anarres e por isso decide ir ao planeta vizinho a fim de exercer suas ideias, e a sua jornada mostra o quão ingênuo ele é ao pensar que os dois planetas estariam suscetíveis a pensar de forma conjunta compartilhando suas experiências e conhecimentos.

Depois de reler 1984, de George Orwell e por trabalhar essas obras, é quase que impossível não relacionar ideias semelhantes abordadas nos dois romances (entenda-se aqui o romance como gênero literário, e não a ideia de romance romântico). Um dos pontos que vi pontos de contato foi o apagamento da História e a questão da transformação da língua. Mas o que parece mais assustador em Os despossuídos é que a violência e métodos de controle são de formas que não colocam uma determinada figura no centro do poder. O que quero dizer é que não há essa figura do Grande Irmão tão presente nas casas e o medo incessante de se dizer ou pensar em algo contra o sistema, mas sim uma estrutura mais velada de poder que manipula seus indivíduos sem que eles percebam ou acreditem que as ações são as únicas perfeitamente possíveis.

Refletindo agora para escrever essa resenha percebi o quão rico este livro é por trazer tantas reflexões, o que me deixa tentada a relê-lo com mais ênfase e detalhes. Mas fica a sugestão não só de Os despossuídos, mas também de A mão esquerda da escuridão que também se passa no mesmo universo.

 

Sobre a autora

Ursula Kroeber Le Guin nasceu nos Estados Unidos em 21 de outubro de 1929. É uma das escritoras de ficção científica e fantasia mais proeminentes do mundo. Vencedora de mais de cinquenta prêmios literários e criadora de diversos universos ficcionais, Ursula também é poeta, ensaísta e autora de livros infantis. É conhecida por livros como A mão esquerda da escuridão, Os despossuídos e o laureado livro infanto-juvenil The farthest shore, além de ter sido indicada ao Pulitzer pelo livro de contos Searod. Faleceu em 22 de janeiro de 2018.

Fonte: Editora Aleph

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Até o próximo post!

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3 Comentários

  1. […] Por conta de uma disciplina da faculdade eu finalmente deixei o receio de lado e me debrucei sobre a obra de Margaret Atwood, então muito das minhas impressões sobre o livro acabaram sofrendo influência das discussões em sala de aula, assim como de modo comparativo dos outros dois romances distópicos estudados: 1984, de George Orwell e Os despossuídos, de Ursula K. Le Guin. […]

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  2. […] das leituras obrigatórias do semestre e teve resenha comentando sobre: Resenha | Os despossuídos, de Ursula K. Le Guin […]

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  3. […] optou pela temática da distopia, com isso os romances estudados foram 1984, de George Orwell, Os despossuídos, de Ursula K. Le Guin e O conto da Aia, de Margaret Atwood, clássicos do gênero. Eu até preciso me redimir porque eu […]

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