Oies Bookaholics!
Os lanças-chamas, de Rachel Kushner foi uma das leituras obrigatórias que precisei fazer para uma disciplina da faculdade e vou tentar compartilhar algumas obervações que fiz durante a leitura. A obra foi publicada aqui no Brasil pela editora Intrínseca e confesso que foi uma leitura que me exigiu muito.
The Flamethrowers – Tradução: Cláudio Carina – 2014 – 352 Páginas – 4/5
O ano é 1975 e Reno – uma jovem recém-formada que ganhou esse apelido por causa de sua cidade natal — acaba de se mudar para Nova York disposta a transformar em arte seu fascínio por motocicletas e velocidade. Sua chegada coincide com um período de ebulição no mundo artístico de Manhattan: pintores, escultores, fotógrafos, videomakers e agentes estão começando a colonizar a até então deserta e industrial região do SoHo, a desenvolver ações no East Village e a confundir os limites entre vida real e arte. Passional, vulnerável e corajosa, Reno se junta a um grupo que a submete a uma espécie de educação sentimental. Ela logo começa a namorar um artista plástico chamado Sandro Valera, herdeiro distante de um império de pneus e motocicletas italianos. Quando eles visitam a família de Sandro na Itália, Reno se vê envolvida com membros dos movimentos radicais que tomaram conta daquele país nos anos 1970, e uma traição a jogará nos submundos da clandestinidade.
Os lança-chamas é uma obra que se desenvolve a partir de múltiplas camadas, temporalidades e perspectivas narrativas. Por conta da polifonia adota como elemento crucial da obra, a história não se limita apenas à história de Reno a partir do momento em que sai de sua cidade natal no interior dos Estados Unidos com o desejo de para trabalhar com arte na Nova York. Mais do que isso, o leitor acaba por imergir em diferentes lugares e situações, em que somente uma leitura cuidadosa consegue contextualizar o passado e o presente desta estrutura densa e não-linear.
Diante das diferentes vozes que tomam a narrativa para si, percebe-se que há uma espécie de jogo em que a arte, umas das principais e recorrentes temáticas na obra, assume diferentes noções artísticas e ideológicas em contraste não só com as ideologias sociais e políticas de um período, mas de forma dialética na própria arte e no seu discurso artístico. Ao pensar as noções de arte, a autora faz usos recorrentes de referência artísticas em diferentes meios, seja nas artes plásticas, no cinema ou na música.
Por outro lado, há diversas passagens no romance em que percebe-se um discurso marcado pela metalinguagem, passagens estas em que há uma discussão sobre a criação e os materiais da arte, não somente referências artísticas. Reno ao relatar as aspirações dela no segmento da Land Art apresenta ao leitor um conceito em que além da junção entre natureza e arte tem por ideologia um desinteresse pela arte desenvolvia via cultura industrial e um interesse às questões ligadas à ecologia. O que também pode ser visto como algo ambíguo, já que há utilização dos recursos naturais e como efeito a efemeridade da arte, assim como desses recursos quem vêm sendo cada vez mais escassos diante da intervenção humana.
Nesse sentido, em um nível mais devastador, a narrativa se volta à exploração da floresta amazônica e da mão de obra quase que escravizada dos povos indígenas, com o intuito de servir aos interesses capitalistas da produção de borracha para o segmento automobilístico italiano durante a década de 1940. Essa marcação temporal em forma de flashbacks serve não só para colocar em oposição o uso da natureza, mas também para apresentar as raízes familiares do personagem Sandro Valera, uma das justificativas para que ele se voltasse contra o império de sua família fascista. Indo morar nos Estados Unidos para usar a arte de forma idealizada contra a realidade dele na Itália, Sandro se enquadra no tipo de artistas homens revolucionários, mas que por outro lado representam e perpetuam o estereótipo misógino. Em ambos os casos se percebe, sob a perspectiva de Reno, a maneira com que os homens, mesmo aqueles que lutavam contra o sistema exploravam o corpo feminino de forma cruel e invasiva à favor da arte revolucionária que eles produziam.
Nessa lógica, se faz necessário pontuar também uma das referências históricas da Nova York dos anos 1970: o Lower East Side. Se atualmente o lugar é considerado patrimônio público por conta das transformações a partir do processo de gentrificação nos últimos anos, no passado era um lugar em declínio, destinados a imigrantes e pessoas de baixa renda. Sob ruínas, passou a ser dominado pelos conflitos armados entre gangues e a polícia, relato este que aparece com as ações do movimento denominado Motherfuckers, e a justificativa para serem chamados dessa maneira era por conta da forma com que tratavam as mulheres.
Com tantas passagens marcadas pela misoginia, parece que até a própria estrutura formal do romance tende a oprimir e rebaixar a (não) protagonista Reno. Deslocada em um novo lugar é sujeita às outras narrativas sobre pessoas e temporalidades que não conhece, nem é revelado o seu verdadeiro nome. Ela quase não tem espaço para contar a sua história, nem condições suficientes para se impor como mulher, mesmo que ela esteja “a frente de seu tempo” ao ser a única mulher a pilotar uma motocicleta e viver de forma independente. A trajetória dela é marcada por acontecimentos que fogem ao controle dela, seu relacionamento com Sandro, o patrocínio com a empresa dos Valera e depois sua imersão ao movimento “terrorista” italiano.
Mas ao mesmo tempo também podemos considerar o efeito prismático desenvolvido por Rachel Kushner, seja pelo viés artístico, seja pelo contexto histórico-social, seja pelas particularidades apresentadas nas temporalidades diversas dos Estados Unidos, Brasil e Itália. Isso significa que Os lança-chamas não pode e não consegue ser classificado como uma coisa só dentro das complexidades formais cada vez mais provocadoras e instigantes naquilo que enquadramos como romance típico e tradicional como gênero literário.
Até o próximo post!
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