Resenha | O compromisso, de Herta Müller

Oies Bookaholics!

Eu tenho a Coleção Folha Grande Nomes da Literatura desde 2016, e confesso que seus títulos me causam receio por serem classificados como “os clássicos”. Mas aos poucos vamos vencendo os “medos” e a resenha de hoje se dedica a essa obra da autora vencedor no Nobel de Literatura em 2009: Herta Müller.

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Heute wär ich mir lieber nicht begegnet – Tradução: Lya Luft – 2016 – 176 Páginas – ★★★★

“Eu fui convocada”, diz a narradora na primeira linha deste romance de Herta Müller – escritora de língua alemã nascida em 1953 na Romênia, de onde emigrou em 1987 para escapar do regime comunista e desenvolver, na Alemanha, uma obra que lhe valeu o prêmio Nobel de literatura de 2009. A convocação a que se refere a protagonista de O compromisso partiu da Securitate, temível polícia secreta do ditador Nicolae Ceausescu. E o delito que pesa sobre a personagem, que trabalhava numa fábrica de roupas, foi ter colocado bilhetes em ternos destinados à Itália, oferecendo-se em casamento para quem quisesse tirá-la do inferno totalitário. A essas experiências se somam memórias pessoais igualmente traumáticas: do primeiro marido que tentou matá-la, do atual companheiro mergulhado no alcoolismo, do assédio sexual sofrido no trabalho, do assassinato da amiga durante fuga, da família marcada por traições e perseguições. São fatos de que ela se recorda durante o trajeto de bonde que a levará a mais um depoimento ao serviço secreto, compondo uma colagem descontínua de reminiscências resgatadas da morte e do esquecimento pelo lirismo áspero de Herta Müller.

Quando parei para escolher os livros da minha TBR deste mês fiquei pensando em qual livro dessa Coleção poderia ler, até que optei por escolher uma autora mulher e quando li a sinopse pensei: eu preciso ler este livro!

O estilo da escrita me pareceu semelhante às autoras Virgnia Woolf e Clarice Lispector, isso porque a sensação é de que estamos adentrando às memórias e fluxo de consciência de uma personagem, sem que se tenham no texto nenhuma marcação gráfica que diferencie memória ou acontecimento presente. Enquanto as duas autoras citadas constroem suas personagens femininas numa perspectiva mais subjetiva, Herta Müller aproveitou do recurso para tratar das experiências, a partir de suas memórias, e porque não dizer das influências autobiográficas, da ditadura militar na Romênia durante dos anos 1960 e o pós-Segunda Guerra Mundial.

Por isso, a obra da autora é considera dentro no gênero do romance histórico, já que tenta representar em seus livros a sua própria experiência como uma mulher romena que fugiu para a Alemanha como até mesmo as experiências mais coletivas durante esse período marcado pelo controle excessivo do Estado, violência e censura. O que marca o sentimento de medo diante da situação que tem vivido é a obrigatoriedade da protagonista em ser convocada para prestar depoimento na polícia depois de ter sido pega colocando bilhetes nos ternos que seriam enviados à Itália, num ato desesperado de socorro.

Bom seria se em nossa cabeça houvesse coisas para serem trocadas, em lugar dos pensamentos que a gente rumina sem cessar. (p. 81)

As páginas de O compromisso são dominadas por descrições em que as mulheres sofrem abusos, tanto psicológicos como sexuais. E talvez por ser uma experiência de diversas mulheres, a escolha da autora em não nomear a protagonista, tirando o nome como uma marca que particulariza um indivíduo. Esta protagonista retrata bem as situações do cotidiano do olhar incomodativo do homem no trem, a violência durante seu primeiro casamento, os abusos no ambiente de trabalho e até mesmo a experiência de sua amiga Lili ao se envolver com um militar mais velho e as consequências desse relacionamento e até mesmo sua mãe e como ela é retratada após a morte do marido.

O veneno é eu acreditar que emu cérebro escorrega para a frente, sobre a cara. É humilhante, não há outra palavra, sentir-se descalça no corpo inteiro. Só que, quando a melhor palavra ainda não é suficiente, não se pode dizer muita coisa com palavras. (p. 7)

Mas como eu mencionei anteriormente por se tratar de um romance histórico, o romance também passa por perspectivas históricas quando o foco da narrativa vai para outros personagens. Como as diversas passagens em que o avô da protagonista fala sobre os campos de concentração ou quando Paul, o novo marido da protagonista, relembra sua infância com um pai socialista (aqui entende-se que o melhor termos nos dias atuais seria fascista). Outro ponto que chama muita atenção é sobre as condições de trabalho forçado nas fábricas, mostrando não só um processo industrial, mas como uma estratégia de controle do Estado.

São quase duzentas páginas de esclarecimento, do retrato de uma sociedade sob condições opressivas, que reflete também nos relacionamentos familiares, tão conturbados e com situações tão complexas que me fizeram me ater em profundidade à narrativa. Foi uma leitura que eu não considerei difícil, se comparado aos livros de Virginia Woolf e Clarice Lispector, principalmente por trazer passagens com descrições tão cruas de acontecimentos, o que foi o ponto mais forte para mim, sem dúvidas. O que não significa que seja uma leitura que seja realizada de forma rápida, é preciso um respiro.

 

Sobre a autora

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Herta Müller nasceu em Nitzkdorf, no Banato, região de minoria alemã na Romênia, em 1953. Seu pai foi soldado da SS nazista e sua mãe foi deportada pelo regime comunista para a ex-URSS, onde passou cinco anos num campo de trabalhos forçados. Poeta e romancista, Herta Müller estudou literatura romena e alemã. Depressões, seu primeiro livro, de 1982, e os seguintes foram censurados pelo regime do ditador comunista Nicolau Ceauşescu. Em 1987, emigrou com seu marido para a Alemanha, onde passou a lecionar em universidades. Por sua carreira literária, em que publicou mais de 20 obras, recebeu dezenas de premiações, entre elas o Nobel de Literatura de 2009 e a Grã-Cruz de Mérito com Estrela da Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha, em 2010, dada como recompensa por serviços extraordinários nas áreas da política, da economia, da cultura, da arte ou do trabalho voluntário.

Fonte: Globo Livros

No Jornal Rascunho destaca a jornada da autora e questiona principalmente o porquê de sua obra ser tão pouco conhecida no Brasil. Além disso, mostra especificamente sobre este romance que:

Já desde seu primeiro romance no Brasil, O compromisso (que no original leva o belo e longo título de Hoje eu teria preferido não me encontrar comigo),publicado por aqui em 2004, antes ainda da láurea do Nobel, a Securitate e a experiência com os horrores do regime romeno mostrou ser o foco principal de Herta Müller. O romance já aborda os rituais dos interrogatórios freqüentes aos quais é submetida a personagem central. A viagem em direção ao agente da Securitate é um pesadelo, a vida passa por sua cabeça, e a estação final é o absurdo, enquanto o fluxo da consciência é interrompido ritmicamente pela entrada e saída de passageiros. O romance aborda a onipresença do denuncismo e da traição, o medo que acaba sempre vencendo, a loucura diante da realidade, que erige um mundo tão errado a ponto de a felicidade necessariamente se tornar impossível. A narradora é indesejada desde o princípio. No romance  assim como em outras obras da autora  não são feitas perguntas, não há ponto de interrogação, muito menos exclamações ou pontos que as marquem.

Herta Müller quebra o silêncio, arranca a mordaça “eterna” imposta pelo sistema totalitário de Ceauşescu e sua Securitate a fim de investigar o significado do estigma, de averiguar em que medida é irreversível a avaria anímica causada pelo tacão de um Estado que invadiu sua casa, sua família e seu ser (quando descobriu, por exemplo, que sua melhor amiga a espionava). A escola do medo encarada na infância marcou Herta Müller para sempre, assim como o eterno dilema entre ficar e partir, e a dificuldade de chegar quando a fuga se tornou necessária.

Fonte: Jornal Rascunho

 

Em entrevista durante o Louisiana Literature Festival 2014, que infelizmente está em alemão e com legendas em inglês, a autora pontua, dentre outras coisas, sobre o apagamento do momento ditatorial na Romênia (semelhante à nossa realidade brasileira), com os livros de História não tratando do assunto, e afirma que há leis que impedem o acesso aos documentos dessa época. A Romênia sempre se considerou como anti-fascista, mas não assume a posição que assumiu algumas décadas atrás.  

Ela também firma que como os camponeses quase não falavam sobre esse período, não conseguiam expressar suas experiências: “In their dialect, there are no words for psychological states” (tradução: em seu dialeto não há palavras para estados psicológicos). Esclarece que com a ditadura você aprende a ficar quieto, e utiliza o termo esquizofrenia para caracterizar esse sentimento traumático. Com a censura, a escrita também era considerada como algo que tinha que ser silenciado e a necessidade de esconder seus textos. 

Para a autora a linguagem é algo que se faz a partir de experiência, o retrato de uma sociedade; pode ser usada como análise de uma sociedade; só é possível fazer os registros da experiência de uma ditadura pelas palavras. E mesmo que ela tente representar essas experiências a partir das palavras, acaba sendo uma experiência artificial porque as palavras não conseguem representar tudo. A construção de textos é completamente diferente da realidade com que as coisas aconteceram. 

A entrevista também destaca as experiências pessoais durante a infância da autora e o porquê dos relacionamentos familiares serem tão problemáticos, assumindo que ela mesma tinha diversos problemas com seu pai, assim como a protagonista de O compromisso, e foi esclarecedora para que eu pudesse entender melhor seu romance.

 

Espero conseguir me aprofundar ainda mais na obra dessa autora incrível e que tem revolucionado a literatura.

 

Até o próximo post.

 

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16 Comentários

  1. […] O compromisso, de Herta MüllerO compromisso (Herta Müller)  […]

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  2. Que interessante! Não conhecia a autora e nem a obra!

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    1. Oies Tati!

      Mulher eu tbm não e fiquei bem feliz em ter esse livro na minha coleção, senão fosse por isso, talvez tivesse contato com a obra de Herta Müller ❤

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  3. Fiquei curiosa para conhecer a autora. Belo post!

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    1. Oies!

      Fico muito feliz por isso, obrigada! 🙂

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  4. A ditadura romena do Nicolae Ceausescu foi um show de terror, tomos sofreram, mas em especial as mulheres, que foram proibidas até de tomarem anticoncepcional, tinham que engravidar de maneira compulsória. Estou estudando a literatura de testemunho e me interessei por essa autora. Parabéns pela resenha, excelente como sempre!! Bjs!!

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    1. Oies Ju!
      Acho que sem sombra de dúvidas esse é um livro para vc! Pelo pouco que vi sobre essa ditadura fiquei bem chocada, e ainda mais agora com essa informação que vc trouxe! Eu gosto muito da literatura de testemunho, acho que é um ótimo exercício de reflexão sobre essas experiências traumáticas e uma tentativa de evitar que coisas semelhantes aconteçam!
      Fico muito feliz por vc ter gostado da indicação! ❤
      Bjos da Cah

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      1. Legal!! Cah!! Mais um para minha lista!! Bjs!

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  5. Que maravilha de resenha, Camila. Interessante a autora não nomear a protagonista. Quando nomeamos algo, inscrevemos esse algo dentro do que o nome permite. Assim, o significado desse algo encontra diversas restrições. E ao não nomear a protagonista, a autora permite que todos os seus sofrimentos possam ser internalizados por todos os leitores, ela torna os sentimentos universais.
    Adorei sua resenha e as informações que você trouxe.
    Abraço.

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    1. Oies Gabriel!
      Nossa, que incrível a percepção que vc trouxe a partir da ausência do nome da protagonista, acho que contribuiu muito para o entendimento e interpretação da obra.
      Fico muito feliz pela sua presença por aqui, como sempre e por ter gostado do post! Thanks! 🙂

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  6. Vou ter que adicionar à minha lista… 🙂

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    1. Oies Jauch!

      Caraca, fico feliz por isso! 🙂

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      1. Fizeste uma resenha mesmo daquelas de deixar água na boca 😉 Eu agradeço! 🙂

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